sábado, 31 de maio de 2014

A CRÍTICA PROSTITUÍDA


“O crítico literário é um homem que sabe ler e que ensina os outros a ler. ”

-Charles Augustin Saint-Beuve-

 

Um crítico apurado, talvez, não considerasse de bom tom iniciar o artigo com uma citação que beira o clichê. No entanto, em nosso caos cultural, mergulhados na profusão de títulos que são lançados diariamente às livrarias, nem assustaria vermos alguns livros com o carimbo “made in china”.  Sim, a Internet e o Word produzem escritores em escala industrial e quase sempre sem controle de qualidade. Junto com o fenômeno da multiplicação dos livros, surgiram os messias e as oficinas literárias que prometem formar os novos best-sellers do século. A literatura se tornou um mercado pagão. 

Ao olharmos para trás, lembrando de um período não tão remoto, encontramos nomes como Carpeaux, Augusto Meyer, Álvaro Lins, Antônio Cândido, Silviano Santiago. Personagens que atravessaram o século XX avaliando obras e proporcionando, através dos jornais, as críticas de rodapé, eram elas que despertavam o crivo dos leitores. A maioria desses críticos começaram a escrever numa época em que não havia especialização em Letras e Literaturas, elaboravam análises facilmente compreendidas pelo brasileiro médio, os conduzindo ao encontro dos melhores autores e elegendo os clássicos que até hoje enaltecem as bibliotecas. O que houve com a crítica literária? José Castelo, jornalista da Gazeta do Povo, afirma que ela não mais existe. 

Atribuem o ocaso da crítica à implantação da Teoria da Literatura dentro das universidades. As análises, antes acessíveis, ganharam ares incompreensíveis, pernósticos, rodeadas de códigos ininteligíveis ao leitor comum. Enquanto os primeiros críticos brasileiros do século XX avaliavam e avalizavam um livro, os rebentos da Teoria Literária dissecavam cientificamente um texto. A ótica universitária trouxe o peso do enfado. 

Como nada se perde e tudo se transforma, a necessidade do lucro fez nascer no mercado editorial duas deturpações pejorativas: O Publisher e o Resenhista.  

O Publisher veio tomar o lugar do nobre ofício de Editor. Agora, os livros são publicados visando o seu potencial de vendas, a capacidade do autor agregar leitores, a busca de nichos comerciais imbuídos de caráter pecuniário. 

O Resenhista é a versão empobrecida do saudoso crítico literário, é a crítica prostituída. Longe de ser um teórico, ele se coloca como leitor profissional. A resenha não se obriga ao compromisso com a linguagem, nem a conceitos ou tradição. É uma redação sobre um livro e se presta, geralmente, a promover o salto das vendas. Não é incomum percebermos a relação incestuosa entre resenhistas, autores e editoras. Se quiséssemos alçar a resenha ao patamar de crítica, nós a chamaríamos de crítica de patota. Qualquer garoto de 15 anos elabora uma resenha, não é preciso muito, além de ler o livro e desenvolver elogios ou apontar erros. Tudo irá depender da intenção, nunca de um compromisso estético.

Após a revolução da informática, nunca tivemos tanto a necessidade do crítico literário que nos traga novamente a avaliação que avaliza aquilo que se deve ler, que devolva ao livro o status de obra de arte e retire dele o rótulo de produto. Do jeito que estamos, o universo literário representa uma Gotham City onde o Batman é um herói falecido.

 

 

 

 

 

quarta-feira, 21 de maio de 2014





http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/_ed799_discursos_inflamados_contra_os_taxistas

VERDADES DO COTIDIANO

 
 
 
 
 
DA SÉRIE: VERDADES DO COTIDIANO.


 Juro, às vezes, tento fortalecer minha fé no atendimento do funcionário público, mas logo surge um desses verdugos de cartório, que somente com uma caneta consegue impingir as mais dolorosas torturas contra... os desprotegidos contribuintes, e minha crença desaba em céticas ruínas.

Quarta-feira. Compareço ao posto da Inspetoria da Receita Estadual para dar entrada num processo de reconhecimento de isenção de ICMS, o vigilante me aponta o guichê e vou de encontro ao meu destino. Não havia ninguém para me atender, mas uma senhora “quebra-galho” apareceu do nada e me perguntou o que eu desejava. Expliquei a minha demanda e ela me informou sobre a lista de documentos que eu deveria trazer. Ok, voltarei no dia seguinte.

Quinta-feira. Retorno pela segunda vez ao posto da Receita Estadual na Tijuca, caminho até o guichê, encontro um funcionário com pastas abertas e digitando compenetrado.

- É aqui que dou entrada no pedido de isenção de ICMS? – Pergunto.

O funcionário me lança um olhar hostil por cima dos óculos (que logo se transformaria numa expressão de desprezo mesclada com repulsa) e me responde:

- Estou ocupado e tem um senhor na sua frente. Vai ter que aguardar.

O tom foi tão ríspido que só não reagi por que o atendente me lembrou um simpático personagem de desenho animado, o Urso do cabelo duro. Além disso, pressenti que qualquer reclamação poderia ser retaliada com a obrigação de um calvário burocrático que eu preferi evitar. Respondi que aguardaria e me sentei.

Uma hora depois, ele me acena com a mão, era a permissão para que eu me aproximasse. Expliquei o meu caso e estendi a documentação solicitada pela primeira atendente. O Urso do cartório me informa que faltavam documentos, digo que trouxe os documentos que me informaram como necessários no dia anterior, ele pergunta quem me deu a relação e eu deduro a atendente da véspera. O Urso chama pela atendente, mas ela não o atende. Tudo inútil. Ele me passa uma lista complementar a primeira. Novamente, saio frustrado.

Sexta-feira. Terceiro dia, volto ao posto da Receita Estadual. Aproximo-me do guichê e, numa tentativa de transmitir simpatia, pergunto o nome do atendente, o mesmo que me deu a nova lista de documentos.

- Opa, lembrado de mim? Estive ontem aqui. Esqueci foi teu nome? – Introduzo a conversa.

Ele me olha por sobre os óculos sem nenhuma expressão que eu pudesse identificar e responde num murmúrio.

- Anham... Meu nome é Paulo. Vai ter que aguardar.

Sento e espero resignado. Quarenta minutos depois, ele me acena com a mão e corro ao seu encontro como um cão adestrado. Se eu tivesse rabo, não tenho dúvidas que o abanaria. Entrego os documentos. Ele vai ticando tudo com a caneta desconfiada e, ao final, me transmite a trágica notícia.

- Está faltando a xerox da identidade de um dos requerentes.

Senti uma vertigem, um gosto amargo na boca. Contive meus tremores e confirmei que havia trazido a documentação que ele me relacionou. Paulo me volta o olhar gélido que só os que comungam com uma mesa revestida em fórmica sabem transmitir. De repente, quando seus olhos cruzaram com os meus, ele pareceu ter sido tocado por alguma brisa de piedade.

- Bem, como você já veio aqui algumas vezes, vou fazer vista grossa - era a minha anistia.

Ele carimba a papelada e me libera afirmando que não poderia dar prazo para a aprovação, pois o sistema estava com problemas. Nada mais importava, saio feliz daquela cova como um torturado que sobrevive ao seu algoz. Um entusiasmo irrefreável me faz ter vontade de cantar "I'm singing in the rain" e caminho lépido como um degenerado que foi perdoado pelos pecados cometidos. No entanto, um pequeno laivo de vingança quer escapar da minha boca e eu deixo que escorra: vai se foder, Paulo.

sábado, 17 de maio de 2014

BARBA ENSOPADA DE SANGUE - RESENHA DA SÉRIE: DESCONSTRUINDO A CRÍTICA DE ALUGUEL






SÉRIE: DESCONSTRUINDO A CRÍTICA DE ALUGUEL

LIVRO: BARBA ENSOPADA DE SANGUE
AUROR: DANIEL GALERA
EDITORA: CIA DAS LETRAS / 2012

Visitar a Livraria Saraiva, seja onde for, é como entrar numa Blockbuster literária. São livros de autores celebridades como Pedro Bial, Lobão, Fernanda Torres, etc. Além deles, encontramos uma fartura de biografias e edições sobre dragões, ficções com ares medievais, h...istória de vampiros, narrativas de psicopatas caricatos, livros de amor e toda a quinquilharia produzida para um “novo público”. Os melhores livros da Saraiva não ficam nos balcões de destaque, mas empilhados no chão como indigentes das letras.

Obrigo-me a superar qualquer preconceito intelectual que ainda habite o meu universo e compro o título de um desses decantados jovens autores, alardeados como finalistas e vencedores dos mais significativos prêmios literários (nem sempre um marketing sincero, é preciso filtrar). Saio da Saraiva carregando “Barba ensopada de Sangue”, o romance do enaltecido Daniel Galera.

Um protagonista sem nome, cujo estopim da história nasce no suicídio anunciado do pai. Ao mesmo tempo que informa a decisão de se matar, o pai faz o filho prometer que sacrificará a cadela de estimação assim que ele consumar seu intento. O filho promete, mas não cumpre. Ao contrário, adota a cadela e parte com ela para Garopaba com o objetivo de desvendar o mistério ancestral que envolve o assassinato do avô naquele litoral catarinense. Um elemento interessante acompanha o protagonista, ele sofre de uma doença que o faz esquecer o rosto das pessoas e impede que as reconheça mesmo depois de manter contato.

Somados os ingredientes, talvez pudesse se descortinar uma bela trama. Infelizmente, não é o que acontece. Escrito em terceira pessoa, entremeado por diálogos abundantes, o livro não chega a lugar nenhum e parece se perder até do eixo principal, buscando um recurso bobo e pouco criativo para a conclusão do enredo. Durante o decorrer do calhamaço de 422 páginas, somos conduzidos pela rotina vazia do principal personagem, confirmamos o complexo de corno causado por ter perdido uma namorada para o irmão, testemunhamos a readaptação da cadela ao novo dono e passeamos pelas praias invernais de Garopaba através de descrições intermináveis. Um detalhe intrigante nesta nova geração artificial de jovens autores é que a confecção do romance para eles aparenta ser mais um ato de descrever do que o de contar.

Ao término da leitura de “Barba ensopada de Sangue” fica a nítida impressão de que não lemos um romance, mas corremos os olhos por um folder turístico.

A POPULARIZAÇÃO DE MACHADO DE ASSIS E A VULGARIZAÇÃO DA LITERATURA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA





** A popularização de Machado de Assis e a vulgarização da literatura brasileira contemporânea **

Por esses dias discutiu-se tanto a popularização dos textos de Machado de Assis que quase alcançamos um tom clichê. A ideia de reimprimir a obra de Machado objetivando a imposição de um vocabulário simplório, que esteja ao alcance do público menos letrado, é somente um reflexo de uma literatura contemporânea açoitada pelas mãos de editoras que escolheram transformar a arte em cifras lucrativas. Recentemente, a escritora Nélida Piñon afirmou que hoje publicam o que vende, e não mais a literatura que fica. Está corretíssima. E qual a literatura que demonstra capacidade de mercadoria no Brasil? São os livros sobre vampiros brasileiros, ficções medievais encarnadas por anjos e demônios, violência sádica e caricata e romances sobre nada que correm centenas de páginas descrevendo litorais e personagens sem sal. 

O que surpreende é a complacência cúmplice de muitos críticos com a subliteratura e raiva revanchista contra quem imagina poder atualizar um clássico literário. O Word, a Internet e o analfabetismo funcional do Brasil abriram espaço para pretensos escritores que produzem em ritmo industrial, mas pouco se importam com estética, pois estão voltados para os quinze minutos de fama e buscam o eldorado que os tornem best-sellers. Às vezes, contam com competentes empresários que abrem as portas da mídia e transformam o que é oco em celebridade, pois no mercado atual é a celebridade que vende. Tal realidade nos remete ao arquétipo explicitado no filme Muito além do Jardim, onde até um suspiro do acéfalo personagem Chance (Peter Sellers) era interpretado como genial. 

Por que hostilizar a tradução populista de Machado e ignorar os nichos literários criados compostos de livros caricatos lançados para conquistar jovens e limitados leitores? Essa é uma discussão que poderia ganhar amplitude inteligente e está se resumindo a um debate provinciano. 

Clássicos sem herdeiros 

Toda literatura é válida, mas as que devem ganhar visibilidade são aquelas que os editores compreendem como comerciais. É assim que se configura o presente mercado editorial brasileiro. O autor a ser valorizado é o que se comporta como um bom gerente de contas e cumpre boas metas de venda com o seu produto. É este o autor que as editoras inserem na mídia, para eles negociam a condescendência de uma parte da crítica e a partir deles criam a farsa do merchandising. 

Numa nação de leitores toscos, Machado de Assis precisa ser reescrito para vender e os autores de sucesso desfilam a face mais pueril e vulgar da literatura em programas de entrevistas e nos cadernos culturais dos nossos periódicos. Talvez, tenha sido por isso que o nosso Machado elaborou aquela sentença magnífica de Brás Cubas, um ato profético: 

“Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.” 

Assim, nossos clássicos vão ficando sem herdeiros e, pelo visto, se transformando em hieróglifos a serem decifrados.