Em 1873, Machado de Assis escreveu um dos seus
melhores artigos: “O instinto de
nacionalidade”. O texto, ainda hoje atualíssimo em seu corpo de ideias,
mostra o amadurecimento e a formação da identidade literária brasileira a
partir das bases construídas por autores do século 19. Machado indica que é na
essência nacional e no domínio do idioma que reside a independência da
literatura de qualquer país. A visão de
Machado sobre o papel do escritor é de tamanha e paradoxal contemporaneidade
que nos permite estabelecer um diálogo atemporal através de comentários.
Machado
de Assis - Quem
examina a atual literatura brasileira reconhece-lhe logo, como primeiro traço,
certo instinto de nacionalidade. Poesia, romance, todas as formas literárias do
pensamento buscam vestir-se com as cores do país, e não há de negar que
semelhante preocupação é sintoma de vitalidade e abono de futuro.
Não
há dúvida que uma literatura, sobretudo uma literatura nascente, deve
principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a sua região; mas não
estabelecendo doutrinas absolutas que a empobreçam. O que se deve exigir do
escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu
tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no
espaço.
* Relendo as considerações de Machado, quase podemos
acreditar que a nossa literatura ficou estagnada no estágio da adolescência,
poucos passos lançamos à frente, breve foi o leque que se abriu. Não
ultrapassaram um punhado de nomes os autores modernos que buscaram refletir
nossas raízes e que se tornaram universais por serem genuinamente nacionais no
uso da língua que decifra e espelha o ambiente e o seu tempo. A maioria dos
jovens escritores brasileiros estão empenhados em copiar fórmulas importadas e
modismos temporários. Raros são as mudas de criatividade que brotam em terra
tão árida. Alguns autores conseguem reverberar a ausência de identidade em pretensos
romances existenciais vagos e supérfluos.
Machado
de Assis – Estes
e outros pontos cumpria à crítica estabelece-los, se tivéssemos uma crítica
doutrinária, ampla, elevada, correspondente ao que ela é em outros países. Não
há temos... A falta de uma crítica assim é um dos maiores males de que padece a
nossa literatura.
* O velho e bom Machado toca numa ferida aberta. Já
houve um período, nos meados do século 20, que cultivamos uma crítica atuante e
especializada. Por coincidência, uma das fases mais fecundas da nossa
literatura. Mas a crítica morreu e foi sendo substituída por um câncer
incurável, o marketing literário. Saíram os críticos, entraram os resenhistas,
que nada mais são do que leitores usados por autores e editores como massa de
divulgação, não existindo neles critérios ou formação que os qualifiquem.
A violenta difusão dos best-sellers internacionais, acompanhada da redução do livro a um objeto
comercial, fazem com que iniciantes e jovens autores se subordinem ao que
chamam de Mercado Editorial. A literatura brasileira está sendo colonizada
pelos golpes implacáveis de um modelo que dita os temas, a linguagem e as cores
que querem fazer predominar. Ao mercado não interessa a identidade, não existe
identidade, não buscam a literatura como obra de arte. Na verdade, nem se
empenham em formar leitores. O que interessa são as vendas, a necessidade do
lucro imediato.
Machado
de Assis – Em
que peca a geração presente? Falta-lhe um pouco mais de correção e gosto; peca
na intrepidez às vezes de expressão, na impropriedade das imagens, na
obscuridade do pensamento. A imaginação, que há deveras, não raro desvairia e
se perde, chegando à obscuridade, à hipérbole, quando apenas buscava a novidade
e a grandeza.
* O que impressiona é que Machado escreveu este
artigo em 1873 e se iniciarmos a leitura desconhecendo o nome do autor parecerá
que estamos acompanhando uma análise sobre a presente paisagem literária.
Novamente, constatamos que pouco evoluímos e estamos aceitando a colonização
cultural imposta por um suposto mercado. Alguns escritores contemporâneos estão
mais preocupados em ter suas obras traduzidas para o inglês do que receber o
abraço dos conterrâneos. Há uma inversão de valores impulsionada pela fome da
visibilidade, do sucesso e do dinheiro. Neste trem desgovernado é mais
importante ser lido do que ler.
No redemoinho capitalista, os autores neófitos
entregam-se à submissão, contratam consultores literários (alguns que vivem
fora do Brasil) para aprenderem a escrever e estruturar romances de consumo
descartável. Adotam uma linguagem pasteurizada, por ouvirem dizer que será mais
fácil atingir maior quantidade de leitores, desprezam a qualidade em nome do
alcance de um público mais vasto. O livro vai se transformando numa peça
decorativa.
Os badalados jovens autores, lançados por grandes grupos
editoriais, fazem questão de se rotularem como “jovens” (como se isso fosse
algum selo de genialidade precoce), entregam as capas de seus livros a
depoimentos e chancelas de escritores estrangeiros num patético esforço de
ostentar prestígio.
No nosso acervo teatral, também parco de bons
autores, tivemos na década de 80 um movimento cômico batizado de “Besteirol”.
Às vezes, parece que o Besteirol se espalhou tardiamente por todo o campo
literário nacional, fincando residência preferencial nos romances. No Besteirol
que se estabeleceu nos romances não há humor, somente o eco trágico de quem não
mais consegue expressar narrativas com a própria voz.
Machado
de Assis – Não
se leem os clássicos no Brasil... Não se leem, o que é um mal... Cada tempo tem
o seu estilo. Mas estudar-lhes as formas mais apuradas da linguagem,
desentranhar deles mil riquezas, que, à força de velhas se fazem novas, - não
me parece que se deva desprezar. Nem tudo tinham os antigos, nem tudo têm os
modernos; com os haveres de uns e outros é que se enriquece o pecúlio comum.
Outra coisa que eu quisera persuadir a mocidade é que a precipitação não lhe
afiança muita vida aos seus escritos. Há um prurido de escrever muito e
depressa; tira-se disso a glória, e não posso negar que é caminho de
aplausos... Faça muito embora um homem a volta ao mundo em oitenta dias; para
uma obra-prima do espírito são precisos alguns mais.
* Quem esteve na 23ª Bienal do Livro em São Paulo, em
2014, se deparou com o caos. Aquilo se parecia, muito mais com um camelódromo
sem lei ou talvez com uma Fashion Week
literária de deslumbrados, nunca com um encontro de escritores querendo
compartilhar seus trabalhos. Uma calamidade.
Para a Bienal deste ano, só haveria salvação se
Jesus a tivesse invadido e expulsado os vendilhões do templo.
Machado
de Assis – Aqui
termino esta notícia. Viva a imaginação, a delicadeza e força de sentimentos,
graça de estilo, dotes de observação e análise, ausência às vezes de gosto,
carências às vezes de reflexão e pausa, língua nem sempre pura, nem sempre
copiosa, muita cor local, eis aqui por alto os defeitos e as excelências da
atual literatura brasileira, que há dado bastante e tem certíssimo futuro.
* Resta-nos rogar que Machado não tenha sido um mero
“bruxo” e que o tempo prove que ele também foi o “profeta” do Cosme Velho.
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